sábado, 19 de abril de 2008

NA PELE, NO FIM E NA SOPA

Veja só essas criaturas.

Veja aquilo que surge das entranhas da terra e dos restos, entenda seus zumbidos. Eu temo esses seres que invadem a comida, que devoram as narinas de crianças mal-nutridas, que passeiam pelas vestes que cobrem a pele morta. Às vezes, seus olhos liberam tons esverdeados, outras, são tingidos por um vermelho-sangue-talhado. E parecem mirar as chagas, sabem tocar os locais mais incômodos. A boca, os olhos, as pernas querem arranhar. Ouvidos e por toda a face, mesmo que as mãos as afastem. Uma, duas e tantas, retornam, em círculos.

Veja só que criaturas!

Estão nos velórios, no véu e na cortina. No meu e no seu prato, tirando resquícios do suor que secou. Abomináveis. O chocolate estava deliciosamente derretido, quase cristalino, poderia ver meus olhos brilharem através dele. Já o sentia se enroscando na minha língua, banhando-se em minha saliva. Ávidas, as mesmas criaturas - que macularam o rosto da menina que jazia -, nas costas lavadas e no fim da ferida, bailando disformes, saciando-se, vadias. Na fome, mesmo fria, na dor aberta, nas frutas, na gordura da pia. Despejo meu desejo, meu doce desejo no lixo, tantas outras vão recuperá-lo e vislumbrar seus vários olhos brilharem, confusos, sobre suas cabeças inconscientes. Talvez refletindo em suas asas de vitral.

Tenho tanto medo de, um dia, ouvir o seu canto desafinado enquanto adormeço. Pavor de que se esfacelem entre meus dentes e eu perceba que são como esponja e como areia, ao mesmo tempo. Sei que quando findam, despejam larvas e estas rastejam cegamente. O resto do corpo, como carvão, fica inerte, cada vez mais inerte. Que criaturas são essas, que absorvem o perfume e o pior odor? As mesmas que estão na mancha de sangue e na ruína, nos fios de cabelo e grãos de arroz com caldo de feijão. Não há em quem não cause agonia ver ou sentir. Como estão em todos os lugares? Em cima da mesa, dias de calor, na borda da piscina. E na sopa do artista, que, para a criatura, um dia cantou.

5 comentários:

Kassia Nobre disse...

"Ávidas, as mesmas criaturas - que macularem o rosto da menina que jazia -, nas costas lavadas e no fim da ferida, bailando disformes, saciando-se, vadias".

Muita foda! Uma mistura da delicadeza de Clarice com a brutalidade de Graciliano, feita pela percepção apurada da Paulinha =D Adorei mesmo!

bju

Estêvão dos Anjos disse...

Muito bom!

Esse trecho q a Cacilda destacou é a melhor parte...
essa pestes tao em todos o lugares msm ne?

e tu com teu fascinio por insetos..é barata e agora a mosca

"eu sou a mosca q pousou em tua sopa'

Anônimo disse...

=DDD legalllzzzz =DDDD
vamo compartilhar uma troca de links ai, te linkei no meu blog já
molotov

www.ical.zip.net

Anônimo disse...

rÁ !

\o_

Pedro Lima disse...

Seres repugnantes, odiosos, malditos, mas úteis. A medicina forense vai (ou tenta) buscar em seus hábitos a resposta para as causas da morte.
São elas, as moscas, na maioria das vezes, que colonizam primeiro os cadáveres atraídas por seus miasmas e humores.