quinta-feira, 24 de setembro de 2009

DIA DE POSSE: FOME, CANSAÇO, DISCURSOS PROLIXOS

Não dá nem para imaginar o que se passava por debaixo daqueles cabelos grisalhos. Era o dia, o grande dia! A situação não era a mais favorável, afinal, teria que buscar tangentes para saciar a curiosidade dos repórteres e evitar novos burburinhos dos oponentes. Mas e daí? Já tinha se desligado daquela coligação mesmo... Passado, passado, paciência! É bem provável que tenha tapeado o estômago, até porque a solenidade de posse havia sido marcada para 12h. E 12h em ponto. A família toda bem alinhada: a esposa elegante, sóbria, discreta; as meninas super modernas, no estilo e nos acessórios, munidas de câmeras de última geração para registrar os principais momentos da tão esperada posse. Bem verdade que acabaram registrando tudo. Redação do jornal: - Ó, tem uma pauta pra 12h. Maravilha, né? O vice vai assumir a prefeitura, porque a prefeita foi afastada. Se meteu em confusão de novo, sabe? Silêncio absoluto, quebrado pela escolha dos repórteres que viajariam para um município próximo à capital. Saindo da zona urbana, passaram por terras onduladas e manchadas com tons verdes, vacas brancas deitadas, casebres coloridos. Se de um lado viam a sombra das árvores, do outro ficavam cegos com o sol flamejante. Havia fome e calor dentro do carro, uma cantora cantarolava no rádio. Mesmo com o veículo em alta velocidade, um armazém em ruínas deixou o fotógrafo em transe, imaginando uma modelo se revelando entre as paredes destruídas. Ninguém informava com exatidão onde ficava a Câmara de Vereadores: era depois do trilho do trem, perto dos Correios, no Centro, ao lado daquela casa ali, daqui a dois quarteirões. O carro da reportagem ficou parado, a luz de alerta piscando sem parar. O tempo de pensar no que fazer foi interrompido por uma revoada de fogos de artifício e eis que surge a Câmara, cheia de curiosos e pessoas influentes no meio político. 12h40, fotógrafo na frente, a aprendiz de repórter o acompanhando, desnorteada com tantos carros, bicicletas e pessoas passando pela rua estreita. Na porta da Câmara de Vereadores, um antigo carro de som anunciava o que estava ocorrendo ali. A música de fundo: Bolero de Ravel. “Não percam, é hoje! A posse do nosso novo querido prefeito! Daqui a pouco, não percam!”, gritava o orador – radialista nas horas ocupadas. Quando a criatura franzina e envelhecida se calava, a música de fundo tomava conta do ar, aliás, fugia pelas caixas de som. No recinto onde ocorreria a solenidade, apenas os ilustres, os parentes e alguns penetras. Tudo pronto e o orador começa a revelar para os passantes o que acontecia naquela sala. “Agora, o novo prefeito sentou à mesa. Ele vai fazer um discurso antes de assinar a posse”. Falatório de pelo menos cinco políticos rasgando elogios ao comandante da cidade, honesto, trabalhador, pai de família, dedicado, que veio do povo e luta para o povo. Uma idosa cochilava, as crianças começavam a “fazer arte” sob o olhar de repreensão das mães e, bem baixinho, dava para ouvir os estômagos roncarem. O prefeito mexia as mãos o tempo todo, queria falar, também tinha preparado um discurso longo. “Agora, com a palavra, um dos presidentes do partido...”, anunciou o orador. O pai do prefeito foi convidado a ocupar um local de honra e lá ficou quietinho, amansando as emoções. “Atenção povo, atenção todos que estão passando por esta rua! Agora, o novo prefeito da nossa cidade vai falar!”, gesticulando para que todos aplaudissem. Do interior de um terno cinza, o homem apresentou meia dúzia de mudanças nas cadeiras do município, debulhou um sem fim de promessas, mas fez questão de frisar que era uma pessoa humilde. Sim, a humildade era a sua principal característica, sua melhor qualidade e, por isso, conquistava tantos admiradores no meio político. Humilde. É isso, ele era realmente um homem muito humilde, o mais humilde, talvez, e todos saíram de lá com a certeza de que ele era mais humilde do que afirmava ser. Rabiscou um papel coberto por letras miúdas, fez sinal de vitória e ponto final. Deu entrevistas para a TV, para os jornais, preferiu falar de futuro. Enquanto falava, sorria discretamente para uma das filhas que o corujava. Desceu as escadas e seguiu para a prefeitura. Se tivesse apenas que assinar a bendita posse, a cerimônia não teria durado nem 15 segundos. O velho radialista entrou em seu veículo vermelho e verde, com lâmpadas amarelas. Os megafones mal alinhados anunciavam que mais um prefeito ocuparia a cadeira da prefeitura, receberia as chaves da cidade. “Vamos todos à Prefeitura, vamos acompanhar o prefeito, o nosso querido novo prefeito!”, o convite ecoando por todos os lados, sob a melodia grandiosa de Ravel.

2 comentários:

José Feitosa (Zé da Feira) disse...

Tenho a impressão de ter participado dessa história, apesar de tentar ser sempre uma figura invisível, no exercício da minha profissão. Valeu Paula! Você é uma grande observadora.
Sou se fã.

Zefeitosa

Papel A4 disse...

É, tenho a impressão que conheço bem os observadores dessa história!

Adorei Paulinhaaaa!

Alana Berto