quarta-feira, 14 de abril de 2010

A PRIMEIRA NUVEM

Fez daquela manhã o seu último sacrifício, não podia esperar. Para continuar vivendo, bebeu um copo d'água, iluminou a face com o primeiro vestígio de sol, pensou na cor de brasa acesa do café. Amanhecer era a melhor parte de sua vida. Até o início da tarde, não disse uma palavra, pensou nos amigos, escreveu para a família. "Querido, sinto o seu cheiro de manhã todos os dias". Continuava com pedaços de dia vividos de forma tátil. "Meu sonho é decifrar o teu último sonho e definir tuas últimas cenas...".

Já com a pele acordada, caiu no vazio da rua. Clamou aos céus que o frio não fosse de chuva, que não tardasse a hora de fazer do corpo fardo em repouso. Assim, sem rumo, deixou que as pernas - engrenagens de seu todo - a levassem para outras distâncias. Sabe? O meu tempo não mede espaços, ele vai aonde deito minhas palavras, percorre um caminho que supera as voltas e voltas e tantas outras voltas. Penso que poderia caminhar por centenas de tempos nesta chuva (começou a chover), cansar a respiração, perder a saliva e não parar de tocar distâncias. Foi dessa forma que nasci. Eu vim do deslocamento, das fugas, dos desejos por novos tempos. Eles saíram para que eu não tivesse medo. Deixaram portas fechadas para que os sonhos não fossem roubados, vieram novos. Os outros adormeceram.

Costumava falar em voz alta, desde que se viu em terreno amplo, tendo que abrir portas para visitas. Tendo que perceber o botão folgado da camisa, o sal exagerado da comida. A estrada infinita que liga o passado ao futuro. No meio período entre ser e estar, fotografou nuvens e mandou para os mais próximos, não ainda queridos. Notou que, no fim de tarde, elas se movem rapidamente e têm cor de vulcão, mesmo quando minutos antes estava em tom de cinza. Na nuvem de ontem, viu um pássaro voando tão livre, um tanto agressivo. Sorriu.  

Nenhum comentário: